Não me alembro bem dereito
Mas clareia na lembrança
Um causo que ouvi
Nos meus tempo de criança
Não sei se fala de fé
Ou se fala de abastança
Mas que fez ne mim um medo
De perder a esperança
Já faz tempo bem bastante
Qu’inda era um menininho
Cunteceu na minha famía
Cunteceu cum meu padrinho
Intão vi com us meus zói
Eu vi tudo de pertinho
Nóis morava na estrada
E nóis tinha uma pousada
Lá de junto do Corguinho
Entonce Quinca de Dona Zefa
Abastado pra daná
Resolveu subir pro norte
C’uma carga pra negociá
Levô mandioca arroz feijão
Abóbora milho e cará
O carro foi lotado
E levô a famía pra passear
Me alembro como hoje
E me aperta o coração
Era uma época diferente
O povo tinha muita devoção
Padre Tiago nem tinha nascido
Mas aqui tava o Frei João
E Quinca de Dona Zefa
Arresolveu fazer essa tarefa
Caçando a própria maldição
Vô explicá do meu jeito
Vem cá, senta aqui no canto
Q’antigamente nóis tinha regra
Dinheiro não valia tanto
Hômi de verdade tinha postura
O bigode era um encanto
Mas quero dizer do coração
Nóis tudo tinha devoção
E não trabalhava em dia santo
Mas Quinca era diferente
Trabaiô até se abastá
Dizia que cum seu dinheiro
Tudo poderia comprar
Falava que finado Frei João
Ficava mentindo no altar
Inventando os dia santo
Só pro povo num trabaiá
Tava chegando a páscoa
Quinca nem se importô
Num ouvia nenhum consêi
Ele se achava o dotô
Pegou seu carro de boi
Os boi carrêro impariô
Encheu o carro de coisa
E com a famía viajô
Lembro do véi meu pai
Q’insistiu muito ainda
Pedindo pr’ele ficá
Pra ver Jesus perder vida
Ia chegar a Semana Santa
Num era semana de lida
Era semana de ficar em casa
Na noitinha seguir pra missa
Entonce Quinca de dona Zefa
Cuma nunca se importô
Cumeçô a blasfemá
E cum meu pai assim falô:
– Mas Cumpádi me admiro
Que preguiça o sinhô
Dá ouvido pra Frei João
Cum seu jeito faladô
Fic’uma semana sem trabaiá
Indo pra missa que horror
Vô seguir umas vinte légua
E voltar como mercador
Assim Quinca viajô
Nóis comecemo a novena
Quinca foi comendo porco
Nóis tava de quarentena
Fiquemo junto em famía
Rezano com seu Badia
Quinca seguindo pro norte
Xingano os boi de Fí de Pemba
Quinca viajô mais longe
Chegano quase no nordeste
Povo daqui muito devoto
Em dia santo num investe
Até encontrar um outro
Apelidado cabra da peste
Ali muito negociô
Vendeu quase tudo que levô
Inda comprô
u’as peças de veste
Domingo tinha sido de Ramos
Quinca nem oiô a Cruz
Já era Segunda Santa
A alma de Quinca sem luz
Ele nem pra se acordar
Lembrá que Deus que nos conduz
E q’aquele era o dia
Da prisão do meu Jesus
Carro de boi abarrotado
Famía cum nada importava
O toicim no assuái
O couro de cima acubertava
Oito boi que lá mugia
As roda que cantava
Cinquenta légua pela frente
Por nada Quinca parava
Semana Santa lá seguia
Nossa famía em devoção
A terça já tinha passado
Na quarta a missa da escuridão
Lembrando cuma escureceu
Cum Cristo apanhando na prisão
Eu oiava na estrada
Apertava o coração
Quinta feira tinha chegado
Nada de Quinca aparecê
Na pousada pros pousêro
Nóis tinha muito a oferecê
Na noite de Lava Pés
Tinha comida a mercê
Posêro num pagava nada
Limpava a poeira da estrada
Ia pra missa agradecê
Madrugada de Sexta Feira
Galo começô a cantá
Ouvi um baruio estranho
E comecei a assuntá
Era um carro de Boi
Que estava a viajá
Lembrei do Padim Quinca
Comecei incabulá
Levantei bem depressinha
E meu pai eu fui chamá
O barui foi aumentando
Até nóis podê avistá
Era Quinca que lá evinha
Cum a famía a gargaiá
Vinha descendo a serrinha
Na curva ia entrá
Quando a roda do seu carro
Começou a faiscá
Pegô fogo no toicim
Labareda foi pro ar
A boiada disparô
Famía começô a gritar
Nóis correu lá pra de junto
Mas só os boi pudemos salvá
Entonce agora todo ano
Sexta Feira da Paixão
Sempre que o galo canta
Me aperta o coração
Escuto um carro de boi
Vindo das bandas do sertão
Me alembro de meu padrim
E da sua maldição
Alevanto minhas vistas
Escutando o carro de boi cantá
Carro nenhum aparece
Eu só fico a meditá
Nas coisa de Jesus
Aquele que morreu na cruz
Mas viveu pra nos salvá
Passa hora e tudo acaba
Fico olhando pro capim
Vejo que tudo se foi
E o som do carro de boi
Só no outro ano que vai vim
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© by Samuel Lucas - 2014
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